terça-feira, 10 de junho de 2014

A música portuguesa a orgulhar-se de si própria



Fonte: Facebook do projecto
Com o objectivo de celebrar a maravilhosa variedade da música feita em Portugal, Tiago Pereira cria o projecto “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”. Com recurso a cenários inusitados num ambiente de proximidade, o realizador, com a ajuda de uma equipa de colaboradores, documenta talentos e traz a música portuguesa para a rua.


Por: Fernando Cardoso

O conceito é simples: valorizar parte do ouro artístico existente em Portugal. Foi com esta premissa que Tiago Pereira, realizador e videógrafo, edificou o projecto “A música portuguesa a gostar dela própria”, um canal de vídeo onde regista projectos musicais portugueses. A iniciativa surgiu há três anos e meio e consiste fundamentalmente em explorar e difundir as potencialidades sonoras originárias de cada canto do país. No total, já foram recolhidos e gravados mais de 600 vídeos, misturando na mesma plataforma as actuações de músicos profissionais e amadores. Com a finalidade de captar a simplicidade delicada dos diversos géneros musicais, a estratégia passa por filmar vários projectos musicais em lugares inóspitos, comprometendo-se a transmitir a relação única e intimista dos músicos. Desta forma, os vídeos são sempre filmados em espaços exteriores de modo a aproveitar os sons-ambiente e a criar um certo grau de confinidade com os músicos.
Com a ajuda de uma câmara, de um tripé e de um microfone, Tiago regista os sons, os instrumentos e as canções e, em conjunto com a sua equipa, capta minuciosamente as performances dos músicos. Através de uma abordagem algo particular caracterizada pelo uso essencial do som, o videógrafo recolhe o material para desconstruir e recriar a tradição oral portuguesa.
Tiago Pereira cresceu envolto à canção tradicional e viu na capacidade de documentar a possibilidade de dar reconhecimento à imensidão de géneros e feitios da música portuguesa. “Desde pequeno que estava ligado à música tradicional portuguesa e desde cedo acostumei-me a isso, porque o meu pai era músico”, explica o autor da iniciativa. A ideia do projecto surgiu em 2011, após o arquivista ter feito um trabalho cinematográfico em que expôs a génese da música portuguesa, explorando ao máximo a sua variedade. O documentário, intitulado “Se a Música Portuguesa Gostasse Dela Própria”, fez-lhe achar “muito importante criar uma espécie de youtube onde pudesse pôr a música na rua e onde fosse possível reunir tudo”. O trabalho de Tiago enquanto realizador do projecto passa por fazer cruzamentos entre várias pessoas e captar as histórias que elas têm para contar no sentido de tentar diminuir o fosso existente entre a música popular e a música moderna com maior expressão nos centros urbanos.
“A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” é um projecto de autor e mais do que fazer recolhas de música, o propósito é fazer vídeos documentais. Estes vídeos são vídeos de planos fixos baseados numa lógica teatral associada a uma feição cinematográfica, na qual o documentarista cria um palco onde deixa que o artista seja o protagonista e, através da música, diga aquilo que tem para dizer. Tiago Pereira considera este aspecto da encenação muito importante, uma vez que é o que permite “dar um cunho especial e diferente ao trabalho”. O contexto, traduzido pelo ambiente, escolha do local e paisagem sonora, são elementos fundamentais, porque exprimem essa face teatral e, dessa forma, tornam os vídeos diferentes de simples registos. Todos os momentos são captados num cenário intimista e o mais associado à natureza possível de modo a atrair um público atento e interessado.
Embora o projecto se interesse por explorar todo o tipo de música, foca-se essencialmente na música popular mais afastada dos grandes centros urbanos justamente por ser um género mais difícil de ser descoberto e reconhecido. O processo de trabalho, desde a recolha do material à publicação online dos conteúdos, obedece a um método minucioso e complexo que o autor caracteriza como uma “espécie de triângulo com várias etapas de intervenção”. No primeiro lado existe a recolha, a gravação, a complexidade de chegar às pessoas e o aspecto da encenação, no outro existem os documentários, as entrevistas e a criação de uma narrativa que levante problemas sobre a música portuguesa e no último existem todas as recolhas que o videólogo descreve como “células vivas” que depois são misturadas, colocadas ao vivo e levadas para outros contextos. As recolhas desempenham assim um papel narrativo, contam uma história, e são posteriormente divulgadas, cumprindo-se a finalidade de transmissão da cultura oral.
Em Portugal, o despovoamento das aldeias, a desertificação e a escassez de serviços e oportunidades são realidades acentuadas no interior do país. No entanto, existe uma diferença visível em termos de riqueza tradicional e popular, uma vez que a população idosa, a faixa etária com mais expressão no interior, privilegia uma comunicação ainda muito física e utiliza instrumentos mais rudimentares no seu dia-a-dia. Por esta razão, “A música Portuguesa a Gostar Dela Própria” dá especial atenção à potencialidade musical existente nessas regiões. “As pessoas mais idosas privilegiam a alfabetização da memória, porque têm mnemónicas que foram feitas muito antes de surgir a rádio e a televisão” diz o realizador, salientando que em contrapartida o litoral “é cada vez mais ocupado e igual a tudo”. Tradição é sinónimo de transmissão e é pela transmissão que as culturas passam de geração em geração. Neste contexto, o documentarista reforça a importância que o projecto dá à cultura oral justamente por ter sido “graças a ela que a tradição sempre foi sobrevivendo”.

Flávio Torres tem 34 anos, é natural da Covilhã e um cantautor de música folclórica. Após participações em vários projectos como compositor, cantautor e produtor, o músico edita dois álbuns de estúdio marcados por sonoridades que vão do swing/folk ao pop e ao blues com forte influência na música das décadas de 60 e 70. Em Fevereiro de 2013 junta-se ao leque de artistas filmados por Tiago Pereira no âmbito do seu projecto. Nos recantos da Avenida da Liberdade, em Lisboa, por entre uma voz melodiosa acompanhada do som das cordas das guitarras, a magia acontece.

O músico afirma que foi um privilégio ver o seu trabalho integrado noutro trabalho de grande qualidade e, através dele, poder contribuir para uma maior comunhão de variedades artísticas. “Cada vez mais me orgulho da música portuguesa e do facto de existirem iniciativas tão especiais como esta que viabilizam e mantêm viva a essência e a tradição”, afirma Flávio Torres. Para o artista, a divulgação do autor português, nos mais diversos géneros e feitios, é fundamental para a afirmação do país enquanto território culturalmente coeso e heterógeneo.
Portugal, quer a nível geográfico quer a nível social, sempre foi um país bastante diversificado. Como território muito variado, foi sempre um país permeável à fixação e integração de muitas culturas por ser o extremo ocidental europeu. Desde os árabes aos visigodos, aos celtas e aos romanos, foram milhares as culturas que até hoje habitaram Portugal. Como resultado, a música portuguesa foi sempre sofrendo transformações e acumulando traços específicos de cada povo, consolidando-se como uma mistura de vários géneros. Na óptica de Tiago Pereira, é esta “cataplana de culturas” que torna a música portuguesa diferente de todas as outras e que lhe permite “manter uma riqueza sonora e uma identidade muito ligada às raízes populares”.
Enquanto condutor do projecto, Tiago assume-se também como visualista, na medida em que tem de adaptar o seu trabalho aos novos métodos de produção de conteúdos e procurar modos alternativos de produção como resposta à facilidade técnica proporcionada pelo avanço tecnológico. Considerando que o cinema morreu a partir do momento em que se inventou a televisão, o autor acredita que as técnicas de manipulação surgidas com o desenvolvimento tecnológico obrigaram-no a explorar as potencialidades do audiovisual, afirmando que tem vários projectos onde faz “video samplings, vídeos ao vivo e montagens audiovisuais sempre no sentido de usar o vídeo como uma ferramenta musical”. Desta forma, o realizador procura ser também vídeo-músico e assegura ter sempre a preocupação de que é necessário explorar os limites do audiovisual para materializar e desenvolver o trabalho pretendido. “Na maior parte dos meus documentários, fiz primeiro a banda sonora em estúdio e só depois é que sincronizei tudo o resto”, afirma o documentarista referindo-se ao facto de dar grande importância às técnicas audiovisuais no seu método de trabalho.
Com três anos e meio de existência, o projecto já documentou muitas centenas de músicos, entre eles bandas que entretanto deixaram de existir e outras que se multiplicaram desde então. Desta forma, a iniciativa pretende chegar a toda a gente e disseminar as potencialidades artísticas de cada um pelo maior número possível de pessoas. “Todos produzem e a hierarquia musical tem de deixar de existir, porque a música não é apenas para os eleitos, é para as todas as pessoas”, defende o arquivista.
Misturando música portuguesa, velhinhas, jovens, cenários naturais, lengalengas antigas e samples sonoros, Tiago Pereira consegue manter de pé o objectivo do projecto. Ainda que sem quaisquer apoios financeiros, o interesse pela música e pela descoberta da natureza musical de Portugal leva o realizador a materializar um projecto que é já visto como uma célebre contribuição para a cultura nacional. O projecto “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” é a prova de que o entusiasmo, estimulado por uma dedicação primorosa e uma enorme força de vontade, pode marcar a diferença e fazer de uma boa ideia um trabalho de excepção.

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